BESA: “o roubo do século”

Se a expressão “roubo do século” ainda não tivesse sido utilizada poderia com certeza ser aplicada aos eventos que ocorreram a 29 de outubro de 2014 na sede do Banco Espirito Santo Angola, mais conhecida pela sigla BESA. De facto, tinha sido convocada uma assembleia geral extraordinária nesse dia para examinar a situação catastrófica do segundo maior banco do país e para proceder a um aumento de capital. O Banco Espirito Santo Portugal (BES), acionista de referência com 55,7% do capital social, foi naturalmente convidado para a reunião marcada para para as 11h00, hora local. Mas, atrasada por uma operação policial curiosamente organizada em torno do seu hotel, a representante do BES chegou tarde e não foi admitida. A convocatória da assembleia especificava, no entanto, que se o quorum não fosse atingido às 11h30, os acionistas presentes poderiam deliberar validamente. Eles não se abstiveram de o fazer. Ausente, o BES não pode exercer o seu direito de veto, permitindo aos acionistas minoritários angolanos dissolver os 55,71% do BES e criar uma nova instituição, o Banco Económico, em que a participação portuguesa foi reduzida para, 9,72% do capital. Num dia, a nomenklaturaangolana tinha conseguido apoderar-se de um dos poucos bancos privados do país que ainda não controlava.

A data histórica de 29 de outubro 2014 foi o resultado de problemas de crédito encontrados pelo BESA. Em novembro de 2012, o presidente do banco, Álvaro Sobrinho, formado em matemática, foi despedido sob pressão do acionistas angolanos que o acusam de desvio de fundo e concessão de empréstimos sem garantias. Em outubro de 2013, foi convocada uma assembleia geral extraordinária. O Presidente da Comissão Executiva do BES, Ricardo Salgado, referiu sérias dificuldades na recuperação de fundos da carteira do banco. Em dezembro foi acordado um aumento de capital de 500 milhões de dólares e, o mais importante, Ricardo Salgado convenceu o Presidente dos Santos a emitir uma garantia soberana de cerca de 5,7 mil milhões de dólares a favor do BES para cobrir dívidas de cobrança duvidosa. Embora, como afirma a revista “Visão” , “o montante dos compromissos pendentes do banco angolano e os nomes dos beneficiários destes empréstimos permaneçam [até hoje] pouco claros” e a verdade completa do caso ainda não tenha sido descoberta, é o no entanto possível identificar alguns factos, no mínimo perturbantes, neste processo.

Em primeiro lugar, a carteira litigiosa do BESA pode ter sido aumentada. O relatório anual do grupo revela um crédito total de 5.887 milhões de euros a nível da subsidiária angolana, o que significa que a garantia soberana cobria mais de 62% da totalidade da carteira. Será concebível que o BESA tivesse um rácio de endividamento tão elevado, especialmente porque parte dos empréstimos à habitação eram provavelmente garantidos por hipotecas? Numa sessão parlamentar realizada em 2015, Rui Guerra, sucessor de Álvaro Sobrinho à frente do BESA, declarou que “no momento em que a garantia foi emitida, os créditos estavam em mora no valor de 2,3 mil milhões de dólares”! Podemos, portanto, perguntar-nos se a duplicação do montante da garantia soberana não foi um “presente” do Presidente dos Santos ao seu “amigo” Salgado, talvez para salvar o BES ou pelo menos para tranquilizar – temporariamente – o Banco de Portugal. O facto do Banco de Portugal não ter recorrido à garantia é, no mínimo, preocupante.

A identidade dos beneficiários dos créditos “litigiosos” do BESA é também um desses segredos abertos que só as autoridades envolvidas fingem ignorar. Assim, é pungente constatar que a direção do BES acionista maioritário e muito envolvido na gestão do BESA, ousou afirmar nada saber sobre a identidade dos grandes devedores da sua subsidiária. O mesmo se passou com a autoridade de supervisão portuguesa. Era do conhecimento geral que o BESA trabalhava “para e com” o Estado angolano, e que os membros da nomenklatura tinham fundos substanciais à sua disposição. Através de uma miríade de empresas, alguns deles aproveitavam-se alegremente das ligações, por vezes sulfurosas, entre o topo do Estado, empresários de todas as faixas, e o patrão do grupo Espírito Santo, que conduzia os “seus negócios como um verdadeiro autocrata.

Entre os beneficiários dos créditos concedidos “generosamente” pelo BESA, alguns nomes surgem com frequência. A começar pelos da troika que rodeia o Presidente dos Santos, vulgarmente conhecidos como “Irmãos Metralha”, nomeadamente Manuel Vicente, General Manuel Hélder Vieira Dias Júnior, mais conhecido pela alcunha de “Kopelipa”, e o General Leopoldino Fragoso do Nascimento, apelidado de “Dino”. Logo em 2004, este tornou-se acionista do BESA através da empresa Geni Novas Tecnologias. Isto foi apenas o começo de uma aceleração. O site de informação “Maka Angola” revelou uma série de factos que elucidaram as montagens elaboradas. Por exemplo, o site informa que a entrada da firma Portmil Investimentos e Telecomunicações mediante uma participação de 24% ($ 375.000) no BESA em 2009, foi financiada por empréstimos concedidos pelo mesmo estabelecimento a três empresas fantasmas, pertecentes aos fundadores da Portmil. Os créditos naturalmente nunca foram reembolsados. E, para justificar a contribuição, Portmil conseguiu obter um empréstimo de montante semelhante, através doutro banco local. A história não diz se esse foi reembolsado!

Um dos clientes “históricos” do BESA foi a ESCOM (Espírito Santo Commerce), fundada em 1991 por Hélder Bataglia, um português que se mudou para Angola com os seus pais no final da década de 40. Foi ele que convenceu Ricardo Salgado a investir no país. Em vinte anos a dupla Bataglia – Salgado fez da ESCOM um dos primeiros grupos particulares de Angola, activo nomeadamente, no sector mineiro, da construção e das obras públicas. Não é por nada que muitas vezes foi referida como a “arma económica” do grupo Espírito Santo em Angola, uma vez que este último possuía 67% através da sua filial Rioforte. Durante a tempestade que abalou o grupo BES, a Rioforte foi a primeira empresa a reconhecer a sua insolvência. Portanto, é questionável se a venda da sua participação na ESCOM em Janeiro de 2011 não foi uma forma de reconstruir os seus activos líquidos numa fase crítica. E foi a Sonangol que pagou o resgate das quotas da Rioforte.

A Sonangol é de novo solicitada aquando da famosa assembleia geral extraordinária de 29 de outubro de 2014. A companhia petrolífera encontra-se, de facto, no centro da montagem financeira concebida para criar o Banco Económico sobre os escombros do BESA. Não só toma uma participação directa de 39,4% no capital do novo banco, como também financia dois outros acionistas, as empresas Geni (19,9%) e Lektron (30,9%). Este último acionista, totalmente desconhecido é apresentado como uma sociedade de investimento que congrega “interesses chineses”. Só em junho de 2019 é que se soube que esta empresa era de facto propriedade de Manuel Vicente e do General Hélder Vieira Dias. No âmbito de um acordo com o Procurador Geral da República, a Lektron vendeu a sua participação ao Estado. Quanto à Geni, outro beneficiário da “generosidade” pública, comprometeu-se a reembolsar o “empréstimo” que recebeu.

Como resultado dos acontecimentos de outubro de 2014, o BES teve de registar um prejuízo de 273 milhões de euros, enquanto a nova instituição bancária, o Novo Banco, que tinha retomado os seus ativos saudáveis, teve de assumir um prejuízo de aproximadamente 2,75 mil milhões de euros, que correspondiam a 80% dos financiamentos concedidos pelo defunto BES à sua filial angolana.

Os portugueses interpuseram uma série de ações judiciais. Sem muita convicção, a vontade de virar a página sendo evidente. Mas o caso BESA provavelmente ainda não desvendou todas as suas verdades.

Este artigo é um extrato do livro “Angola para todos”. O livro é um ‘Must-read’ para quem pretende conhecer Angola. Concebido sob a forma de um abecedário, o livro aborda os múltiplos aspectos de um país desconhecido e complexo, muitas vezes encarado apenas através dos seus recursos minerais, o petróleo e os diamantes. A sua realidade profunda desvenda-se na leitura dos setenta e seis temas cuidadosamente escolhidos pelo autor para destacar as diversas características do país, os constrangimentos de uma história particularmente pesada e os muitos desafios que continua a enfrentar. O livro pode ser adquirido junto a editora (clique aqui) ou na Amazon (clique aqui).

Sobre o autor

Daniel Ribant nasceu na Bélgica, em 1953. Estudou Economia e Ciência Política no ICHEC, Bruxelas e no Instituto de Estudos Políticos em Paris. Ex-banqueiro, o autor ocupou o cargo de Assessor em Diplomacia Económica na Embaixada da Bélgica em Luanda. É também o presidente fundador de uma ONG inteiramente dedicada ao desenvolvimento de Angola, a “European Foundation for Angolan Promotion & Development EFFA” (Fundação Europeia para a Promoção e Desenvolvimento de Angola). Deseja saber mais sobre EFFA (clique aqui).

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