O monopólio estatal nos segmentos de televisão e imprensa diária colide com o disposto no artigo 25º da Lei nº1/17, de 23 de Janeiro, Lei de Imprensa e, por isso, o Estado incorre numa ilegalidade.
Financeiramente, o Executivo envolveu-se numa atitude incoerente onde, por um lado, sacrifica o bolso dos cidadãos com aumento de impostos e austeridade e, ao mesmo tempo, assume dívidas e encargos financeiros de empresas privadas. Na óptica do impacto social do investimento público, criar um canal desportivo é dinheiro mal empregue, enquanto, por exemplo, os canais da televisão pública têm problemas de base por resolver por falta de dinheiro.
Tanto a abordagem legal como a financeira, apesar de muito importantes, são questões complementares para o verdadeiro “monstro” criado pelo monopólio recém-criado: o regresso da censura. Há, desde 1992, uma toada de avanços (que se anunciam logo depois das eleições) e recuos (que ocorrem em vésperas das eleições seguintes). Sempre que se iniciam as pré-campanhas eleitorais, acirra-se a polarização política e, mesmo dentro do MPLA, as vozes moderadas sobre a abertura democrática acabam por sucumbir perante a velha concepção da comunicação social como instrumento propagandístico e correia de transmissão ideológica, dominante entre os conservadores do “partidário”. No histórico de censura, citamos de memória os casos do “bué de bokas”, antes de 1992; “o livro de reclamações”, na LAC, antes de 2008; Semana em actualidade, na TPA, antes de 2012; a compra dos jornais privados e o afastamento de analistas mais críticos dos órgãos públicos, antes de 2017 e, nos dias de hoje, a censura de programas “Angola urgente” na Palanca TV e “Directo ao ponto”, TV Zimbo, antes de 2022.
A relação difícil do partido no poder com a comunicação social não é nova e a cada mandato são mais visíveis os sinais de desorientação e repetição de “velhas receitas”. Nos dois últimos programas de Governo 2012-2017 e 2017-2022, o MPLA foi pouco ambicioso, praticamente pisando em ovos. Há uma disparidade entre a consistência dos argumentos noutras áreas do saber e as da comunicação social, viradas essencialmente para aspectos tecnológicos e de infra-estruturas e não para as reformas estruturais que, por não serem feitas, adiam uma liberdade de imprensa sustentável e consistente.
A primeira das reformas urgentes a fazer é a transferência das competências governamentais de licenciamento de órgãos e de poder disciplinar para uma entidade reguladora independente (sem qualquer eufemismo). Essa entidade não deve ter dependência de órgãos políticos e, muito menos, ter a sua composição estabelecida em função dos lugares parlamentares. Deve ser um ente administrativo, representante da sociedade, com poderes de autoridade, competências de fiscalização, consulta, regulação e controlo.
A segunda reforma é a autonomia editorial dos órgãos, nomeadamente a clara separação de poderes entre conselhos de administração e conselhos editoriais. A zona cinzenta de promiscuidade entre estes conselhos permite uma interferência política nos conteúdos e, por outro lado, fragiliza a afirmação dos jornalistas que, assim, aceitam subordinar-se às ordens administrativas para salvaguardar o seu posto de trabalho. Cabe aos donos (públicos ou privados) indicar os gestores administrativos, mas as direcções de informação, tanto de empresas públicas como privadas, deveriam passar pela aprovação de uma entidade reguladora independente e sujeitos ao parecer vinculativo da Comissão da Carteira e Ética. Essa reforma inclui também a implementação dos conselhos de redacção (as empresas públicas são principais prevaricadoras), com competência para eleger os chefes de redacção e decidir sobre a melhor atitude ética do órgão, nomeadamente os casos de incompatibilidade, de censura e de interferência abusiva dos gestores administrativos.
Uma terceira reforma deveria estar relacionada com a participação dos OCS em processos estruturantes como combate à corrupção; promoção da cultura nacional ou recuperação dos valores morais. É fundamental mudar a mentalidade conservadora de silenciamento e marginalização das vozes críticas. Ao contrário, deveriam ser incentivados espaços que protagonizassem e motivassem os cidadãos a assumir uma cultura de denúncia. A própria cobertura jornalística angolana deveria genericamente ser dotada de recursos tecnológicos e económicos que fomentassem o uso responsável de fugas de informação, denúncias populares, investigação jornalística, transcrições de escutas telefónicas e outras.
De outro modo, é mais do mesmo e chegada a pré-eleição, a comunicação social passa a ser parte do jogo político. Mais ou menos encapotados, vão suceder-se os casos de silenciamento.
Ismael Mateus
Fonte: Jornal de Angola