Cobiçada pela Microsoft e sob ameaça de bloqueio por Trump, a plataforma chinesa lançada em 2017 é das mais populares no mundo, sobretudo entre adolescentes. Segredo parece ser um sistema de edição de vídeo intuitivo e eficaz que permite fazer “filmes” divertidos, mais um “sentido de comunidade”.
Fiz um grande sucesso junto das amigas da minha afilhada, que tem oito anos, por ter TikTok.” Joana Rita Sousa, 40 anos, estratega digital, ri. Comecei a ouvir falar disto há dois verões. Disseram-me “é uma cena muito gira” e fui espreitar. Passado um tempo comecei a produzir conteúdos de dobragem [em que faz mímica para a voz de outra pessoa]. É uma rede social, que funciona como qualquer rede social, mas com um potencial enorme de criação de vídeo. Tem um sem número de ferramentas de edição, muito intuitivas, muito fáceis, que te permitem fazer vídeos quase profissionais. Não precisas de ter um curso de produção para te divertires. E tem a vantagem de se poder partilhar nas outras redes.“
Joana não é exatamente a “cliente” tipo do TikTok, associado sobretudo a adolescentes e mesmo crianças como a sua afilhada, mas garante que apesar dessa conotação “há muitas outras coisas. Por exemplo conteúdos pedagógicos – uma professora a ensinar inglês, ou dentistas, veterinários. Há muitos conteúdos educativos, muita gente a fazer tutoriais, e um pouco de tudo, sempre embrulhado em conteúdos rápidos que espantam pela edição. E há miúdos a fazerem coisas bem muito feitas, com muita criatividade.”
Os vídeos têm no máximo 60 segundos e “uma linguagem própria”, explica esta estratega digital que foi também uma aderente inicial do Twitter: “Nota-se muito se o conteúdo não foi criado para lá. Cada rede tem a sua forma de respirar e temos de aprender a respirar com ela. E há muitos “desafios” em que as pessoas entram: a Jennifer Lopez lançou um baseado na dança dela no Super Bowl, a Gloria Gaynor outro, em que lavava as mãos [para matar o vírus da Covid] durante vinte segundos a cantar o I Will Survive.”
No seu blogue, Joana acrescenta outro fator que considera relevante no sucesso da plataforma: “O que nos leva a contribuir com conteúdos para o TikTok? A construção e manutenção da comunidade é uma dessas razões; acompanhar os trending topics ou os desafios e contribuir com o nosso próprio conteúdo, cria a noção de que fazemos parte, de que partilhamos algo em comum com outras pessoas.”
Ameaça e recuo de Trump
O desafio agora é outro, porém: a plataforma lançada em 2017 pela empresa chinesa ByteDance, a qual no ano anterior criara uma rede semelhante, a Douyin, só para o mercado chinês (esta conformando-se às restrições censórias do país) e que logo em outubro de 2018 se tornou a aplicação mais descarregada nos EUA, foi na semana passada ameaçada de bloqueio por Donald Trump, quando decorriam negociações com a Microsoft, interessada em comprar uma posição dominante. O presidente americano chegou mesmo a dizer que ia assinar a ordem no sábado – tem poder legalmente conferido para impedir transações ou congelar bens se acreditar que existe uma “ameaça invulgar e extraordinária” à segurança nacional ou à economia no país, mesmo se não é claro se pode bloquear uma plataforma como a TikTok e caso o fizesse se seguiria decerto uma batalha nos tribunais – mas recuou esta segunda-feira, anunciando agora que só banirá o TikTok se até 15 de setembro não for comprada por uma empresa americana. “Por motivos de segurança não pode ser controlada a partir da China”, disse Trump, mas acrescentou que a rede podia continuar acessível nos EUA se for adquirida por “uma empresa muito segura, muito americana.”
Em causa estão alegadamente preocupações com a possibilidade de uma empresa chinesa ter acesso a dados de americanos ou poder interferir no processo político no país – algo de que, ironicamente, há evidência por parte de uma empresa tão americana como o Facebook.
E se um painel de peritos nomeado pelo governo de Trump e vários políticos, quer republicanos quer democratas, têm vindo a alertar para a possibilidade de influência e de “espionagem” por parte da China via TikTok, a verdade é que o presidente americano tem razões próprias para não gostar da plataforma. Em junho, depois de o seu comício em Tulsa ter ficado muito longe de lotado, os utilizadores do TikTok reivindicaram a autoria dessa falta de assistência, revelando que tinham marcado lugar para não irem – mesmo se a plataforma é muito popular à direita.
O problema é chinês ou das tecnológicas?
Em resposta à ameaça de Trump, a diretora-geral do TikTok, Vanessa Pappas, contratada no início de 2019 (a plataforma tem uma série de dirigentes americanos, numa estratégia óbvia de parecer “menos chinesa”), surgiu num vídeo, divulgado este fim de semana, a dizer que a plataforma “não planeia ir a lado algum”, ou seja, que não tem a intenção de sair dos EUA. Afirmou também que a empresa está orgulhosa dos 1.500 trabalhadores que contratou no país e pretende criar mais 10.000 empregos durante os próximos três anos, proclamando: “O TikTok é o lugar de criadores e artistas para expressarem as suas ideias e se conectarem com pessoas de diferentes origens. Estamos orgulhosos de todos os que consideram a TikTok o seu lugar.”
Seja como for, empresas como a Wells Fargo e várias agências governamentais disseram já aos seus funcionários para apagar a aplicação dos seus telefones de trabalho por temerem que esta seja usada para devassa e espionagem e vários peritos consideram que falta transparência na forma como a plataforma é gerida. Essa questão, porém, como frisa Kevin Roose no New York Times, coloca-se para todas as grandes tecnológicas.
“Não sabemos ainda como é que funciona o algoritmo do TikTok, como foi programado, porque é que mostram certos vídeos a certos utilizadores. Não sabemos como usa os dados que recolhe, ou como cria e aplica as suas regras”, escreve Roose. “Deveríamos saber estas coisas – não apenas sobre o TikTok, mas também sobre as aplicações de social media americanas. Afinal, Facebook, Instagram, YouTube, Twitter e Snapchat têm um enorme papel nas vidas de milhões de americanos, e durante anos funcionaram com um nível de secretismo permitido a muito poucas empresas com o mesmo tipo de importância. O pouco que sabemos do funcionamento interno destas plataformas é descoberto muitos anos depois dos factos, através de fugas de informação ou de “funcionários arrependidos”.”
Também Celso Martinho, CEO da tecnológica portuguesa Bright Pixel, crê que a questão não se coloca especialmente no caso da plataforma chinesa. “É verdade que há umas semanas foram descobertas vulnerabilidades no TikTok, que tinha acesso a dados sensíveis nos telefones (como passwords e coisas do género), mas é muito difícil afirmar que a aplicação foi desenhada para roubar dados pessoais. O que sabemos é que muitas aplicações fazem coisas dessas por descuido, por deficiências de desenho.”
Será o TikTok a cobaia da regulação?
Frisando que a plataforma tem “brutais audiências, a ponto de vermos o presidente dos EUA preocupado”, este especialista do digital reconhece-lhe “uma base muito forte de criadores de conteúdos” e uma “grande potencialidade de coordenação entre as pessoas” – como a que ocorreu no boicote do comício de Trump em Tulsa. “Tipicamente o público utilizador dessa plataforma – como do Reddit, por exemplo – tem uma capacidade superior de se coordenar e organizar. É diferente por exemplo do Twitter, que gera efeitos virais mas não é ideal para coordenação, é mais um canal de emissão. A faixa etária que frequenta o TikTok também propicia essa diferença, porque pela idade, pela atitude rebelde e inconformada, mobiliza-se mais facilmente.”
Isso, aliado ao tal espírito de comunidade de que fala Joana Rita Sousa, poderá ter levado, crê Celso Martinho, ao recuo de Trump: “Terá percebido que não era boa ideia estar a atiçar uma comunidade significativa de utilizadores que se pode virar contra ele.”
Com duas filhas utilizadoras da plataforma, não está preocupado: “Elas não fazem vídeos para o público, fazem-no num grupo restrito de amigas. E como pai vou acompanhando. A minha preocupação com elas é de que saibam distinguir o bem do mal e que tenham conhecimentos sobre a forma como devem utilizar a internet e as aplicações.”
Ainda assim, há riscos que nem um pai conhecedor dos meandros digitais pode acautelar, se forem ocultados. Voltando ao citado articulista do New York Times: “O debate sobre o destino do TikTok deveria na verdade ser um debate sobre devem funcionar as grandes tecnológicas que entretêm, informam e influenciam milhares de milhões de pessoa, e o que devemos exigir-lhes, quer estejam baseadas na China, em Copenhaga ou na Califórnia. Se conseguirmos perceber como lidar com o TikTok – uma aplicação com uma cultura genuinamente criativa e adorada por milhões de jovens americanos – teremos feito muito mais que preservar um grande desperdiçador de tempo. Teremos encontrado um modelo para regular as grandes plataformas tecnológicas, após de rédea solta.”