Numa quinta-feira, Carlos Andrade chega à casa, às 15h00, e estaciona a viatura mesmo à porta, calculando que só voltaria a usá-la no dia seguinte, precisamente às 5h30, período que sai para fazer exercícios físicos. Em nenhum momento lhe ocorreu que era alvo de espia.
Como todos os dias, e a semelhança do que acontece com muitos dos seus vizinhos, estacionou despreocupadamente o carro bem rentinho ao passeio, sem qualquer desconfiança. O jovem de 31 anos só voltou a sair à rua no dia seguinte, quando eram 5h30, tendo, com grande espanto, notado que o carro não estava no local. Sem acreditar no que via, rapidamente tentava encontrar respostas.
Primeiramente, embora tivesse cheio de certeza que o carro fora estacionado naquele lugar, pensava ainda na possibilidade de encontrar a viatura parada mais para frente ou mais para trás. Mas uma rápida ronda eliminou completamente essa possibilidade. Por não haver vestígios de pedaços de cacos de vidros partidos e espalhados no chão, para assim justificar o arrombamento, pensou então que talvez fossem os senhores da fiscalização que tivessem rebocado o veículo automóvel de marca e modelo Hyundai i10.
O bairro São Paulo tem a sua má fama, porém a quase nenhum morador ocorre a ideia de ser assaltado o carro. No mínimo, pensa-se no retrovisor, placa electrónica, antenas e pneus. Mas nunca a viatura toda. “Mas porquê? Não era possível levar um carro a altas horas da noite”, pensou a vítima. Feitas as contas, o carro teria misteriosamente desaparecido entre as 00h00 e as 4h00.
Já tomado por um forte sentimento de impotência, Carlos Andrade decidiu encarar a possibilidade mais aterradora: o carro foi roubado. Na breve conversa com os vizinhos, a questão que se impunha era relacionada às chaves do veículo, mas, ambas, a principal e a de reserva estavam em casa, seguras. Em nenhum momento as tinha perdido.
Naquela manhã de Cacimbo, a cabeça do jovem aquecia. Estupefacto, não tinha forças sequer para regressar ao interior da sua residência e avisar aos demais membros da família, que aquele importante bem tinha sido roubado. Simplesmente teve a coragem de apanhar um táxi, vulgo “candongueiro”, que seguia em direcção à 9ª Esquadra da Polícia, que atende os problemas de natureza criminal que ocorrem na circunscrição. Posto lá, prestou as devidas declarações.
O alerta foi lançado e o caso ficou ao cuidado do Serviço de Investigação Criminal (SIC), que enviou dois efectivos ao local do furto. À vítima sobrou-lhe apenas a obrigação de regressar à casa e aceitar a ideia de que alguém roubou mesmo o seu carro. Sem muita esperança de que o meio fosse aparecer, depois do banho, vestiu-se e tomou o candongueiro para o serviço.
O bom senso convidava-lhe a seguir a sua vida. “Sem outro remédio, a minha família não parava de orar. Neste momento os carros estão muito caros, acima dos seis milhões de kwanzas. Não sabia o que fazer e fui tomado por grande sentimento de revolta”, disse a vítima.
Bem-aventurado. O carro de Carlos Andrade apareceu. Foi recuperado pelo SIC no mesmo mês em que foi roubado. Por sorte, não foi “desmanchado” (vendido peça a peça) nem levado para fora de Luanda. Ao Rui Manuel, 30 anos, aconteceu a mesma coisa. Foi no dia 27 de Janeiro deste ano que viu a sua viatura Hyundai, modelo i10, a desaparecer misteriosamente, depois de ter estacionado junto à porta de casa, por volta das 23 horas, no bairro Nelito Soares. No dia seguinte, levantou cedo para ir trabalhar e verificou que o meio não estava no local deixado.
O jovem entrou em pânico ao ponto de procurar o carro dentro de casa. Sem esperança que o carro fosse aparecer, ainda assim apresentou queixa-crime na esquadra mais próxima do local de residência. Passados seis meses, recebeu um telefonema do SIC, dando conta do aparecimento da sua viatura, que anteriormente era de cor marrom.
“A minha viatura apareceu já com outra cor. Pintaram em cinzenta e trocaram as chaves. Mas não mudaram as chapas de matrícula”, disse Rui Manuel, visivelmente satisfeito. O jovem agradeceu o SIC pelo trabalho realizado e aconselhou outros automobilistas a colocarem GPS e alarme nas suas viaturas.
O susto de Lereno Rosário, 29 anos, foi pior. Perdeu a viatura, uma carrinha Maindra, no dia 24 de Maio, nas imediações da sua casa, no Golf 2, por volta das 20 horas, quando foi interpelado por cinco meliantes armados.
Os bandidos andaram com Lereno durante cerca de 30 minutos e depois o abandonaram junto ao mercado do Golfe, completamente nu. Nessa noite, teve a sorte de abordar uma senhora que o ajudou oferecendo um fato olímpico do esposo. Ainda sob susto, no dia seguinte foi à Polícia denunciar o facto. A viatura de Lereno chegou a ser recuperada um dia depois deste ter feito a queixa-crime, embora o SIC tenha feito a entrega ao proprietário apenas dois meses depois. “Lamentei muito o facto de me deixarem na rua, completamente nu. Ameaçaram-me de morte”, recorda.
Os três casos reportados são parte de um número cada vez mais crescente de roubos, ocorridos diariamente na capital do país. Felizmente, estes pacatos cidadãos tiveram um final feliz, tendo o SIC actuado com zelo e dedicação no trabalho. Porém, não são poucos os casos de cidadãos angolanos que perdem a vida na ocorrência destes furtos de viaturas, com graves consequências financeiras e emocionais na vida de muitas famílias.
“Malfeitores pagam portagem e seguem para Cuanza-Sul ou Benguela”
Segundo o porta-voz do SIC, superintendente Fernando de Carvalho, muitos cidadãos estrangeiros estão por detrás destes roubos, sendo eles os mandantes. “Eles mandam roubar as viaturas e compram a preços que variam entre um milhão a três milhões de kwanzas, fundamentalmente nigerianos e guineenses, muitos deles sem cadastro no SIC”, explicou.
O oficial superior disse que nas últimas semanas o número de roubo de viaturas aumenta significativamente, mas informa que o SIC tem trabalhado no sentido de esclarecer todos os crimes, incluindo os desta natureza. Acrescentou que muitas viaturas roubadas, em Luanda, são levadas para outras províncias do país pelos próprios marginais, para efeitos de comercialização.
“Os malfeitores pagam uma portagem e seguem directamente para Benguela ou Cuanza-Sul, muitas vezes sem serem importunados pelos agentes de trânsito. Temos viaturas roubadas em Luanda, mas aparecem no Huambo ou Huíla”, observou. Na última apresentação pública, ocorrida na segunda quinzena de Julho, no Comando Provincial de Luanda, o porta-voz do SIC explicou que foram apreendidas um total de 26 viaturas, sendo que muitas delas já tinham sido levadas para Benguela, onde foram recuperadas.
“As viaturas de pequeno porte, como o Hyundai i10, são as mais visadas, por facilitarem a movimentação em detrimento de um Jeep. Os meliantes roubam mais turismos, como Elantra ou Accent”, detalhou. Fernando de Carvalho aconselha o uso de GPS e alarme nas viaturas, visto que os marginais conseguem, num tempo recorde de cinco a dez minutos, abrir as portas e pôr a trabalhar uma viatura ligeira.
Relativamente ao furto e roubo de placas electrónicas em Luanda, o porta-voz do SIC adiantou que são muitos os casos de roubo registados diariamente nas esquadras policiais. “Na medida em que as pessoas vão aparecendo, as placas são distribuídas mediante autorização do procurador. Por isso pedimos sempre aos lesados no sentido de virem com um especialista, para aferir a sua placa electrónica”, recomenda.
Sobre os procedimentos a serem cumpridos, antes da entrega dos veículos recuperados, o superintendente Fernando de Carvalho esclarece que “o carro deve passar num laboratório para se aferir se o requerente é ou não o proprietário do veículo, e só depois de o magistrado despachar favoravelmente é que a viatura é restituída”.
Cultura de denúncia
O jurista e professor universitário, Edmundo Miguel, afirma que a consequência prática e directa do cometimento de um crime, seja para o estrangeiro como para o nacional é exactamente a mesma, e se traduz na instauração do competente processo-crime, para se apurar o nível de envolvência de um ou outro crime praticado, apesar de incidir sobre o estrangeiro outras consequências ligadas a sua permanência no território nacional.
No seguimento da sua análise sobre os crimes cometidos por estrangeiros e olhando para as leis que vigoram no país, o jurista levanta duas questões que considera fundamentais. A primeira está ligada a forma como muitos estrangeiros conseguem entrar para o nosso território, sendo que muitos não o fazem de forma legal, tendo em conta as várias fragilidades de controlo fronteiriço, enquanto a segunda está liga às políticas de Estado para entrada e saída de cidadãos estrangeiros no território nacional.
“Para dizer que, se as políticas forem bem definidas e cumpridas por quem as opera, facilmente se terá o domínio de todos que estão no território na condição de estrangeiros, e se saberá exactamente porquê que vieram e o que estão aqui a fazer. Desta forma se prevenirá o crime”, explica, para acrescentar que ainda assim, não considera que as leis em Angola sejam permissivas, embora levante alguma insuficiência no quadro legal.
Na sua opinião, o maior problema reside na falta de rigor na aplicação da lei, e “mesmo que se façam alterações às leis ou se criem outras mais rígidas, o paradigma pode ser outro, mas o problema persistirá, ou seja, o problema passará a ser o aplicador da norma”. “Em muitos casos de roubos de viaturas, os processos crimes, por várias razões, não chegam ao seu fim”, disse.
Sobre o seguimento do processo por parte da vítima, Edmundo Miguel refere que o furto de viaturas é um crime contra o património das pessoas, tipificado como um crime particular, sendo que, de acordo com a lei angolana, o seu impulso processual e a continuidade do processo depende da iniciativa do ofendido. Nestes termos, detalha, o Ministério público, por mais que quisesse dar continuidade ao processo, não o poderia, por ser parte ilegítima.
Adianta que o facto de, por exemplo, o meliante ter sido encontrado com a viatura supostamente roubada, constitui meio de prova para o processo despoletado, mas ainda assim não legitima o Ministério Público a dar seguimento ao processo “de per si”, nem a sua consideração como criminoso, porque só com um processo judicial transitado em julgado é que se pode considerar o sujeito em causa como criminoso (princípio da presunção da inocência).
Sem a conclusão do processo, sublinha, os meliantes acabam sendo soltos sob termo de residência e ficam livres de voltarem a praticar as mesmas acções. “Não porque a legislação é insuficiente quanto à sua regulação, mas sim por causa da realidade social e urbanística observada nos vários focos populacionais do país, com destaque para a periferia das províncias de Luanda, Benguela e Huambo. Esta situação dificulta e muito o trabalho das autoridades policiais, assim como a nossa actividade enquanto operadores do direito”, analisou.
No caso de a vítima exigir que o processo siga, o senão recai para o medo de represálias. O jurista Edmundo Miguel generaliza não ser apenas um problema de Angola, mas sim do mundo. Para ser ultrapassado, pontua, é preciso o Estado dotar-se de mecanismos de protecção de vítimas, testemunhas e arguidos que colaborem com a justiça em processo penal.
“Mas, claramente, estas medidas precisam de ser revistas e constantemente actualizadas, no intuito de proteger melhor a integridade física das pessoas protegidas, no sentido de se adoptar as melhores práticas internacionais em direito penal e processo penal”, reforça. Se estes indivíduos podem ou não sofrer um processo de deportação compulsiva, clarifica que neste caso importa referir que a lei penal angolana, processual penal e a dogmática do direito penal no seu todo, orientam a conhecer a natureza do crime para se despoletar o processo.
Para aquelas vítimas que temem levar o processo avante, tanto por razões de medo, trauma ou simplesmente desleixo, o jurista desaconselha esta atitude. “O sucesso dos programas de combate à criminalidade é um dever (nos crimes contra particulares e semi-públicos), porque sem a iniciativa do ofendido não é possível a actuação do Ministério Público, não só do Executivo, como também de toda a sociedade civil, e quanto mais casos forem levados ao conhecimento das autoridades competentes, melhor será a actuação com vista a garantia dos seus fins”, sustenta.
“Acção direccionada da Polícia não é xenófoba”
O sociólogo Zeca Branco, igualmente professor universitário, também opinou sobre o assunto. Na sua análise, o fenómeno crime, olhando para um segmento populacional específico, com laivos migratórios e sobretudo para uma tipologia de crime associada a um grupo particular de migrantes (os vulgos “mamadus”), trata-se de um fenómeno multidimensional, complexo e com diferentes protagonistas.
Para o sociólogo, apesar de a sociedade angolana habituar-se a olhar este segmento populacional como eminentes comerciantes, tendo o domínio da rede de venda a retalho em Angola, sobretudo em cantinas e lojas de peças de automóveis, a presença de cidadãos do oeste de África no campo do furto é um fenómeno recente e acredita que factores económicos e percepção subjectiva que os actores têm da fragilidade das nossas autoridades, constituem elementos propiciadores para a prática de tais crimes.
“Há que destacar que parece existir uma tendência de ignorarmos os factos sobre a criminalidade praticada por estrangeiros. Mais do que simples criminosos, devemos falar de verdadeiras organizações criminosas, estruturadas e funcionais, destacando a máfia asiática e não apenas os do oeste africano”, disse.
Além dos “mamadus”, Zeca Branco diz ser bastante notória a presença da organização criminosa chinesa no país, tendo muito recentemente o SIC desmantelado um grupo de cidadãos chineses que se dedicava à produção de notas falsas. No caso de haver uma actuação mais rígida dos órgãos de defesa, dependendo dos processos de selecção e estigmatização dos criminosos, desenvolvidos e consolidados pelas instâncias formais e informais de controlo social, se fundadas única e exclusivamente em preceitos normativos legais, constantes do ordenamento jurídico angolano, o sociólogo Zeca Branco acredita que não haverá margem para narrativas de índole xenófoba.
“Deste modo, as autoridades policiais e os serviços de investigação não devem temer agir de modo implacável com todos os criminosos e organizações criminosas estrangeiras, com o receio de serem vistos ou taxados como xenófobos. É preciso construir um quadro institucional, social e mental que desincentiva os criminosos”, aconselha.
NoPor fim, Zeca Branco adverte não ser justificativa que se lhes dê um tratamento diferente pela relação de proximidade geográfica e cultural, normalmente invocada com a designação de “nossos irmãos”. “Tais criminosos aproveitam-se do estado de desorganização social, das fragilidades dos mecanismos de controlo social e da débil participação da sociedade no combate ao crime, por via de denúncias”, concluiu.
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