Estamos cada vez mais tempo online, dependentes de likes e prontos a consumir informação não verificada. Documentário da Netflix expõe modo como as redes sociais manipulam as nossas vidas.
Acabei de ver um documentário chamado O Dilema das Redes Sociais que me assustou mais do que qualquer filme de terror que vi nos últimos vinte anos”, escreveu George RR Martin, autor dos livros Guerra dos Tronos, no seu Twitter. “Acho que as redes sociais têm efeitos terríveis na nossa sociedade… no discurso político, no jornalismo, na estrutura da democracia. Mas não tinha percebido quão grave era a situação até ver este documentário.”
Não foi o único a ficar assustado. O filme que denuncia o modo como as redes sociais manipulam os seus utilizadores de forma impercetível e os riscos que isso acarreta estreou-se há pouco mais de uma semana na Netflix e é descrito por Alexis Duggins, no jornal britânico The Independent, como “o documentário mais importante do nosso tempo”. “Quando acabar de ver este filme vai querer deitar o seu telemóvel no lixo. E depois vai querer atirar o balde do lixo contra a janela de um executivo do Facebook”, escreveu Mark Kennedy, da Associated Press. “Desligue e fuja”, aconselha o título do The New York Times.
Mas a questão é: será que é possível fugir?
O Dilema das Redes Sociais foi realizado por Jeff Orlowski, que é mais conhecido pelos seus documentários sobre natureza e questões ambientais (Chasing Ice e Chasing Coral) e, embora tenha algumas cenas dramatizadas, é, na sua essência, um documentário que dá voz a uma série de ex-trabalhadores de topo de empresas tecnológicas que estão ali para nos contar como é que ajudaram a criar “monstros” como a Google, o Facebook, o Instagram, o YouTube, o Twitter e outros. E porque é que hoje em dia, a não ser que se tenha uma vontade de ferro, é praticamente impossível escapar às redes sociais.
Entre todos, o destaque vai para Tristan Harris. A revista The Atlantic chamou-lhe “o mais próximo que Silicon Valley tem de uma consciência”. Harris era “designer de ética” da Google e foi percebendo como “um grupo de 50 designers, com idades entre os 20 e os 35 anos, localizados na Califórnia, estavam a tomar decisões que teriam impacto em dois mil milhões de pessoas”. “As pessoas que estão por trás do ecrã têm muito mais poder do que as pessoas que estão à sua frente”, diz, referindo-se aos criadores das aplicações e ao modo como estas cada vez mais manipulam os seus utilizadores.
Tristan Harris considera que, apesar de terem começado por expandir as nossas mentes, as novas tecnologias acabaram por aprisioná-las. Saiu da empresa para denunciar o human downgrading, qualquer coisa como o abaixamento do nível humano, expressão que usa para definir o efeito dos problemas causados pelo uso intensivo das redes sociais: vício, desconcentração, isolamento, polarização, desinformação.
A internet sabe tudo sobre nós
Temos a falsa noção de que a utilização das redes sociais é gratuita mas alguém está a pagar por ela: os anunciantes. Eles são, portanto, os verdadeiros clientes destas empresas. E nós achamos que estamos a utilizar uma ferramenta, mas na verdade estamos a ser vendidos. Esta é uma velha máxima do mercado: “Se não estás a pagar pelo produto é porque tu és o produto.”
Que as redes sociais querem comprar os dados dos seus utilizadores é algo para o qual já todos estávamos mais ou menos despertos. Mas o que estes especialistas nos dizem vai um pouco mais longe. Como afirma Jaron Lanier, cientista de computação e artista visual e um dos criadores da realidade virtual: o produto é “a mudança gradual no nosso comportamento e na nossa perceção”; o que as redes sociais querem é “mudar o que fazemos, o que pensamos, o que somos”, gradualmente e de forma impercetível.
Como? Através do algoritmo.
Para se ter a certeza de que um anúncio é eficaz tem de se conseguir prever quem precisa do produto que está a ser anunciado, quem já tem interesse nele, quem poderá ficar interessado, quem é mais suscetível de ser influenciado pelo anúncio. Para que essa previsão seja cada vez mais certeira é necessária muita informação. As empresas de tecnologia têm essa informação e por isso podem vender essa precisão aos anunciantes.
As redes sabem tudo o que fazemos online. Tudo. Sabem o que vemos, quando vemos, onde e durante quanto tempo. Sabem quando as pessoas veem fotos dos seus ex-namorados, se procuram namorado numa aplicação de encontros, se encomendam comida para um ou para seis, se preferem sushi ou hambúrgueres, a que horas vão para o trabalho, o que fazem à noite, se têm insónias. Sabem tudo isso e muito mais. Todos esses dados são arquivados, cruzados e usados para fazer previsões cada vez mais acertadas sobre os nossos comportamentos.
O computador constrói modelos que preveem as nossas ações e começam a interferir nelas. O algoritmo sabe que vídeo nos pode mostrar que nos vai prender durante mais um bocadinho. Que emoções nos estimulam a continuar online. O objetivo não é, como dizem alguns otimistas, dar-nos coisas que nos agradam para nos fazer felizes. Sim, o algoritmo dá-nos aquilo que queremos mas o seu objetivo é aumentar o uso que fazemos das redes e a interação que estabelecemos (aumentar o engagement) para nos dar mais publicidade e, finalmente, fazer dinheiro – fazer muito dinheiro, não é por acaso que as empresas tecnológicas são as mais poderosas e que os seus líderes encabeçam as listas de milionários.
De manhã à noite: sempre online
O modelo de negócio das redes sociais é simples: manter as pessoas nos ecrãs. Nas redes sociais nada acontece por acaso. O algoritmo sabe tudo o que procuramos na internet e, por isso, a seguir vai dar-nos sugestões que vão ao encontro dos nossos interesses. Os likes, as tags, os emojis , são maneiras de provocar a interação; as reticências que aparecem quando alguém está a escrever mantêm-nos em suspenso (e ligados). Tudo é pensado para nos manter online o máximo de tempo possível.
O “scroll infinito”, por exemplo, atua na nossa mente criando uma espécie de vício que nos impede de desligar: tal como o jogador de uma slotmachine pensa sempre que na próxima jogada é que vai ganhar, ao fazermos scroll, o facto de não sabermos o que aí vem, cria um suspense. A libertação de dopamina (também conhecida como hormona do prazer) é comum a ambas as situações.
“Isto está tudo estudado, não é por acaso que as pessoas ficam viciadas nos videojogos e na internet como ficam viciadas em substâncias”, confirma ao DN Ivone Patrão, psicóloga que há muitos anos estuda o efeito nas tecnologias e tem como pacientes pessoas que “podem passar 12, 16, às vezes mesmo 24 horas seguidas, sem dormir, a usar uma tecnologia”. “Esses são obviamente casos patológicos mas o que nós reparamos é que o consumo está a alargar-se entre todas pessoas”, diz. “Como o telemóvel é um minicomputador, que usamos para tudo, seja como despertador, para falar com os outros ou para ver as notícias, o que está a acontecer é uma normalização do seu uso.”
Esta tendência agudizou-se no período de confinamento. “Os nossos estudos apontam para um aumento do tempo que as pessoas estão online na ordem dos 70%, o que é muito preocupante”, diz Ivone Patrão. Impedidas de sair de casa, estávamos online para trabalhar, para estudar, para fazer compras, para socializar, para ver filmes ou para jogar. No final de 2019, um estudo realizado nos EUA concluiu que as pessoas estavam em média mais de seis horas por dia online. Neste ano, devido à pandemia, essa média terá seguramente aumentado. “Verificamos o telefone antes de fazer chichi de manhã ou enquanto fazemos chichi de manhã? Porque essas são as duas únicas hipóteses”, pergunta um dos entrevistados no filme.
Redes Socias, chucha digital e outros perigos
Os riscos deste consumo excessivo de internet e redes sociais são, antes de mais, mentais. “A mim preocupam-me sobretudo os jovens e as pessoas que são emocionalmente mais vulneráveis”, diz Ivone Patrão. As pessoas que nasceram a partir de 1996 são a primeira geração que cresceu com internet e que se habituou a ter “uma chucha digital” para resolver todos os seus problemas.
No entanto, substituir os contactos presenciais pelos contactos digitais vai aprofundar a solidão, a depressão, a ansiedade. “Aquela necessidade de termos sempre uma reação do outro, a pressão da imagem”, tudo isso vai gerar problemas mentais, a que, nos casos dos jovens e das pessoas vulneráveis, se podem juntar perigos reais de segurança.
Alem disso, “vivendo no seu telemóvel”, controlada pelo algoritmo, cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Não há contraditório. Não tem maneira de saber o que é verdade e o que é mentira. A utopia dá lugar à distopia.
Esta vulnerabilidade tem sido aproveitada por regimes políticos e campanhas ideológicas. Sempre houve marketing e propaganda, mas as redes sociais permitem espalhar narrativas manipuladoras com uma rapidez incrível, a uma escala global. Claro que com um pouco de regulação os gestores das redes poderiam controlar a proliferação de informações falsas e boatos mas… a desinformação – porque gera interesse e interação nos utilizadores – dá lucro. Todos os especialistas ouvidos em O Dilema das Redes Sociais não têm dúvidas de que se nada for feito os perigos são enormes: para a democracia, para o ambiente, para a economia, para todos nós.
O tom do filme neste momento é um pouco alarmista. Ficamos todos, como George RR Martin, um pouco assustados. A única solução, dizem, seria que todos desligássemos as nossas redes sociais para sempre. Mas claro que isso não vai acontecer. É impossível voltar a colocar o génio dentro da garrafa. Esse é o dilema. Como aproveitar o bom que a tecnologia nos dá sem sermos completamente manipulados? Primeira dica: desligar as notificações. Segunda: nunca seguir as recomendações. “Escolham sempre.” Depois há que controlar a utilização. Procurar outras fontes de informação. Confirmar as informações antes de partilhar algo. Estimular o sentido crítico. Ter outras fontes de prazer. Desfrutar das maravilhas do mundo sem usar um ecrã.
Tudo isto, claro, depois de ver o filme no computador, usando uma plataforma de streaming, de partilhar o trailer no Facebook e de publicar um comentário no Twitter. E já agora usando a tag #TheSocialDilemma.